Porque gosto de treinar antes do pequeno almoço e como aqui o sol nasce cedo, optei desde o início da minha estadia aqui por realizar um treino extra de pelo menos 60 minutos.
Comecei por treinar no recinto de práticas onde de manhã é calmo onde se recebe o ar fresco dos montes mesmo ao lado.
Sensivelmente à hora que acordo existe uma carrinha que sai para comprar os vegetais e outros ingredientes para o pequeno almoço.
Quem a conduz é o Senhor Ma, antes de saber o seu nome referia-o para mim mesmo como o senhor dos vegetais.
O Senhor Ma nas suas mais de sete décadas vive com a mulher aqui em Tao Lin numa divisão com cerca de 15m2 que é simultaneamente quarto, sala de visitas, sala de refeições, sala de treino e arrumações. Neste espaço está toda a sua vida e os pertences e está sempre disponível a receber vistas.
Cerca de 30 minutos depois de iniciar a minha prática a carrinha chega e sen desligar o motor juntamente com os cozinheiros o senhor dos vegetais descarrega os ingredientes para o pequeno almoço.
Logo no primeiro dia o Senhor Ma aproximou-se enquanto eu praticava e fez-me as correções necessárias para otimizar o meu alinhamento, falou comigo em Chinês, demonstrando com o corpo a importância das costas estarem redondas.
Verificou de novo o meu alinhamento e entrou na carrinha para a estacionar no parque.
Passei a ter um professor privado, um senhor simpático que me corrigia todos os dias. Na primeira semana pouco sabia dele a não ser que era o senhor dos vegetais.
Duas semanas depois chegou a Tao Lin um aluno que voltou para o seu treino anual. Chama-se Li, é de origem Coreana e é guia turístico de profissão. Como fala inglês, rapidamente se estabeleceu uma ligação de amizade às refeições e nos passeios a seguir ao jantar.
Como o Li é da mesmo província do Senhor Ma uma das noites depois do jantar fomos visitar o senhor dos vegetais à sua casa para partilhar uma melancia que tínhamos comprado nesse dia na aldeia.
Depois da partilha da melancia, saboreada de cócoras cada um com um alguidar a servir de apoio para que as gotas não caíssem no chão, a conversa evoluiu para o passado do senhor Ma e como na sua juventude tinha praticado variadas artes marciais até ter encontrado o Mestre Cui Ruibin.
Na pequena sala à medida que a conversa evoluía o senhor dos vegetais ia-se gradualmente transformando: os olhos brilhavam, o corpo ficava maior e ganhava um agilidade pouco comum para uma pessoa de mais de 70 anos. Tal como uma criança que chega a casa e conta entusiasmada o que aconteceu no recreio, o senhor Ma contava histórias de combates com outros praticantes de artes marciais chinesas e histórias de confrontos com wrestlers russos que tinham em tempos cruzado o seu caminho.
Encarnava às vezes o seu oponente simulando os golpes que lhe tinham sido desferidos e outras era ele próprio demonstrando os golpes que tinha conseguido infligir com sucesso ou não.
Não era preciso saber falar chinês para se sentir o ambiente, o passado das artes marciais da China e ser possível observar através daquele homem um espírito que se mantinha vivo, ágil e presente – muito par além do corpo.
O final dos confrontos acabavam com o Senhor Ma a representar os oponentes a cair em desequilíbrio para trás – caindo em cima da cama atrás de si para dar mais ênfase à história.
Depois desta noite – para mim surreal – melhor que qualquer filme de artes marciais que já vi até agora, todos os dias encontro o senhor dos vegetais nos intervalos das suas funções aqui em Tao Lin, passa o seu tempo a treinar a postura da árvore. Ás vezes de pé, outras sentado, acompanhado da sua mulher ou do neto que ás vezes o visita.
Deixei entretanto de praticar no exterior para realizar um treino mais específico no interior do edifício. Durante cerca de 15 dias estive praticamente sozinho. Até que um dia o senhor dos vegetais descobriu-me e visita-me desde então com alguma regularidade e com instruções sempre preciosas e contextuais.
O Mestre Ma é um exemplo vivo de que envelhecer como uma árvore significa que à medida que os anos passam o corpo fica mais forte, enraizado, curioso e disponível. Se por fora poderá parecer envelhecido, é a sabedoria recolhida pelos anos de prática que ensinam a paciência das árvores a quem aceita o desafio diário de integrar quietude com com outros aspetos da vida – tal como o senhor dos vegetais o faz.
Boas práticas.
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