“Esta prática é extremamente aborrecida, mas num contexto global é muito interessante” – Comentário de um aluno chinês ao Zhan Zhuang Chi Kung em Tao Lin.
Aqui o treino começa às 8 horas em ponto. Nem mais nem menos. Alinhamos em duas filas e saudamos o professor destacado para ensinar a aula da manhã. Saudação feita e são preenchidos os espaços disponíveis do pátio onde exista sombra – ou quando chove, onde exista abrigo da água.
Uma vez alinhados preparamo-nos individualmente para os 70 minutos que dura a prática de quietude. Como quem realiza uma viagem, verificamos se tudo está pronto: pés à largura dos ombros e bem assentes na Terra, costas relaxadas e cabeça alinhada com o Céu. Cada aluno pratica uma postura que lhe foi destinada à medida que vai progredindo e que lhe permite – dependendo da postura – experienciar o movimento na quietude e a quietude no movimento sobre várias perspetivas.
Durante este tempo experienciamos o calor, o desconforto e os insetos que encontram também às 8h da manhã provavelmente uma das refeições mais nutritivas do dia – cerca de 40 praticantes aparentemente parados e disponíveis a serem picados.
Não é necessário que passe muito tempo para que com 35°C húmidos se transpire gota a gota e a transpiração escorra pela cara, pescoço, costas, peito, braços e pernas.
À medida que a pratica decorre o corpo começa a reagir com desconfortos, dormências e tensões, quando são libertadas exorcizam histórias somatizadas que estavam alojadas em locais seguros e menos conscientes do corpo.
A mente acompanha este movimento e viaja para o futuro para o passado, para o que nos disseram, para o que nos fizeram, para o que fizemos e dissemos, o que foi vivido e aquilo que ainda se gostava de viver.
Ás vezes por momentos a mente também estabiliza e deixa de existir calor, transpiração, insetos, passado, futuro, desconfortos e tensões. Nada disto desaparece como que por magia, mas faz parte da multitude – e da aceitação incondicional – daquilo que o presente tem para nos oferecer – como um oceano onde não se conseguem distinguir as gotas de água que dele fazem parte da a sua imensidão.
Depois sem aviso tudo começa: a mente torna-se de novo selvagem, os insetos tornam-se impossíveis, o barulho das cigarras torna-se ensurdecedor, as comichões e os desconfortos retornam.
A partir de certa a altura duvida-se se tudo isto é real ou uma criação da mente que produz motivos para nos levar a abandonar a quietude – como fuga ao que estamos a experienciar no aqui e no agora. Somos convidados a sacudir os insetos, a limpar as gotas de transpiração ou a mover o corpo para aliviar os desconfortos – estes parecem por vezes de uma intensidade inultrapassável. Na dúvida não nos mexemos, abraçamos a quietude com tudo aquilo que ela tem para nos oferecer, confiamos na impermanência e de que tudo eventualmente se transforma – e transforma, às vezes passados alguns segundos.
Durante os 70 minutos somos todos corrigidos – duas vezes. Uma no início e outra a meio da prática.
Frequentemente as correções são sempre iguais, como mantras, no mesmo local do corpo: cabeça, cabeça, cabeça, cabeça, depois passados alguns dias o mantra muda: anca, anca, anca, anca.
O Mestre Cui Ruibin (leia-se T’sui Ruipin) está habitualmente presente na primeira metade da manhã, quando isso acontece é ele que faz as primeiras correções, podendo levar um tempo infindável com cada aluno até os princípios de alinhamento serem entendidos.
Depois inicia a sua prática pessoal connosco, ocupando um lugar que esteja disponível no pátio.
Todos somos corrigidos, alunos, professores, funcionários, residentes e até o próprio Mestre Cui é corrigido – frequentemente, nos mesmos aspetos que também nós somos corrigidos – alinhamento da cabeça, anca ou diferença na altura das mãos.
No ocidente é comum projectar-se no mestre – homem ou mulher- a perfeição que não conseguimos atingir – este é habitualmente um dos caminhos para a desilusão -: esquecer-se que o Mestre é um ser humano exatamente como nós.
No oriente um mestre á aquele que assume claramente que erra – mas que erra há mais tempo que o aluno -, o que eventualmente se transforma numa mestria no caminho do erro e não no caminho da perfeição.
Por errar há mais tempo pode apontar ao aluno onde este pode melhorar.
A perfeição que pode demonstrar e aparentar é fruto dos erros cometidos e não das perfeições atingidas, é a curiosidade e a coragem de incluir esta variável no seu caminho de prática – todos os dias até que a sua existência termine e é isso que faz dele alguém em quem possamos confiar. Porque é curioso e corajoso, ultrapassou a tendência do “já está bem assim”.
A busca “da perfeição” transforma-se assim num caminho e não num ponto de chegada – e o erro num fator essencial à evolução e não um fator limitativo à mesma.
Quando ficamos na segurança do “já está bem assim” e esquecemos que a correção do erro e a insegurança tem um maior potencial de evolução do que aquele que promete o “estado de perfeição”, corremos os risco de que a nossa existência evolutiva termine mais cedo – frequentemente anos ou décadas antes de nos passarem um certificado de óbito oficial.
Boas práticas.
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